Troquei poucas palavras com a D. Raimunda. Nem sei como me via, ou se via. Meu silencio com D. Raimunda era sempre intermediado por minha esposa – é assim que a Márcia pede para identificar nossa relação e é assim que eu, atento, a atendo.
Quem bem conhecia D. Raimunda era minha sogra. Era ela que há muito diminuía as dores da fome de D. Raimunda. No anonimato de sua generosidade, minha sogra expressava – e expressa – a inteligência que alimenta a dimensão existencial de quem é assim.
Também, sei muito pouco sobre D. Raimunda. Sei que seu mundo era a via. Não a via que eu via em D. Raimunda. Não. Mas as vias da cidade. D. Raimunda Flanava – em meus olhos era assim – pelas ruas de Macapá um ócio de liberdade desarrumada, como deve ser a liberdade.
Pode parecer desconexo, contraditório mesmo, mas essa talvez fosse a única liberdade conquistada por D. Raimunda. Flanar pela cidade. O resto, era tudo escravidão. De antes e de agora.
Do pouco que sei, sei de um saco de chão que carregava sobre os ombros, ombros que carregavam todo o patrimônio de D. Raimunida, especialmente as latas de alumínio que, creio, reciclavam o horror do esquecimento humano.
Sugeri para Márcia algumas vezes para que, quando a encontrasse, convidasse D. Raimunda a frequentar meu pequeno escritório de advocacia no horário de almoço, momento em que, diariamente e com muito afeto, entrego, com contribuição de poucos amigos, uma refeição diária para pessoas – como D. Raimunda – imperceptíveis aos tempos nus da cidade.
Não deu tempo. Hoje D. Raimunda foi atropelada em uma de suas vias e está morta. Sem que o atropelador lhe prestasse a mais comezinha homenagem do socorro, D. Raimunda foi atirada na via em que, como disse antes, flanava e da qual era íntima, e lá morreu.
Esse, e admito com tristeza sincera, pelo menos para mim, foi apenas um último atropelo sofridos por ela. Muitos outros infartos de vida D. Raimunda suportou solitária antes de deitar em definitivo na via da cidade que atravessava.
Tudo lhe foi negado, desde muito antes de nascer e, sempre, organizadamente negado.
Nada mata mais do que a política da indiferença. Nela, na solenidade da indiferença, nem janela há. É uma fábrica ininterrupta de Raimundas, como D. Raimunda.
Eu sempre quis escutar dentro de quem flutua a cidade. Há, seguramente, um réquiem, uma composição que desculpa o carrasco, uma liturgia de vida nem que seja para uma missa de mortos.
D. Raimunda morreu, e daí?
Ruben Bemerguy